terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Agnóstico de Escapulário...

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Não creio em Deus...

Mas uso escapulário até que ele se esfacele pelo tempo...

Contraditório?

Ao tomar banho tiro do pescoço e penduro junto a toalha com respeito incompreensível...

Nunca saio de casa sem ele...

É meu ritual surreal agnóstico que zomba de milagres de ‘apóstolos’ de Jesus na TV mas não desrespeita um cordão com imagem em cada ponta...

O primeiro ganhei ainda antes da primeira comunhão de minha Vó Antônia após lhe confidenciar um segredo numa noite fria de Porto Alegre...

A fé da Vó ‘Pequena’ era algo que comovia...

Suas novenas intermináveis cansativas num terço imenso cheio de aves-marias entremeados por pai-nossos e glória-ao-pai concluídos com uma salve-rainha em latim que sei de cor até hoje...

Suas passadas lentas a caminho da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora da Rua Plínio Brasil Milano é um filme em câmera lenta na retina da alma...

As procissões que eu odiava mas adorava a vela acesa que respingava pedaços quentes em minha mão que eu mordia após solidificarem como um milagre...

Um dia, ainda menino, confessei-lhe um crime...

Havia matado um homem...

Subi em disparada escadarias imensas do colégio Dom Bosco da Rua Eduardo Chartier com um porteiro em meu encalço a esbufar por estar em local que não deveria circular durante o recreio...

No dia seguinte soube que ele havia morrido do coração...

Fiquei congelado pela culpa...

Segundo minhas deduções de legista-mirim espelhado nos gibis do Dr. Nick Holmes escudado pelo amigo mordomo Duarte...

Jamais havia contado pra ninguém...

Além de porteiro ele era encarregado da venda de vinhos do Colégio...

Minha mãe narrou que, no caixão, seus dedos ainda estavam tingidos do vermelho das rolhas manuseadas...

Fiquei assombrado...

Noites imensas sem dormir com a cabeça coberta com medo que ele estivesse abaixo de minha cama...

Minha Vó Antônia riu muito da minha culpa...

Me consolou:

'Você é um homem bom'...

Não sou...

Preferia que o desgraçado porteiro tivesse morrido em outra ocasião...

Para não ter que carregar um escapulário pra cima e pra baixo pelo resto da vida numa tradição compulsória...

O tempo se tratou de me provar que não matei o homem da cantina de vinhos...

E gerou um descrente incomum que usa escapulário como penitência...


Jorge Schweitzer




Janela, Basculante, Quarto de Dormir...

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Semanas atrás peguei uma passageira que chorava...

Sua senhoria pediu que se mudasse...

Estava sem rumo...

Adorava sua casa...

Cada curva de suas portas conhecia no escuro...

Cada interruptor...

Cada janela e basculante...

Ali passou grandes momentos...

Sua bicicleta na garagem...

Sua planta na janela...

A cortina esvoaçante...

Os sons da sua casa que se modificavam quando o sol batia forte...

O cheiro de maresia que corroia placas de seus aparelhos eletrônicos...

Seu endereço...

Suas contas na caixa da portaria...

Suas esquinas...

O moço que trançava assentos de cadeiras debaixo da marquise...

Seu jornaleiro...

Seus amigos da lanchonete...

O café pingado com joelho a escorrer o queijo na manhã...

Seu jornal aberto na primeira desgraça do dia anterior...

O vento que batia forte nas ruas transversais da praia...

O caminhão barulhento da Comlurb atravancando a rua...

O mendigo a dormir sobre o papelão ao lado da lavanderia...

Os pedintes chatos ao lado do caixa eletrônico do Bradesco...

Os catadores de latinhas que reviravam o lixo da entrada de seu prédio...

O cego que dava esmolas eventuais para purgar suas culpas...

O menino pés descalço que ela achava que iria surrupiar seu celular que bate fotos...

Suas referências...

Até já havia se acostumado com os porteiros pozudos sentados na portaria como executivos...

Lhe determinavam regras de janeiro a novembro...

Dezembro, carregavam suas sacolas...

Descreveu a tapioca do ambulante com chocolate...

O churrasquinho da madrugada com cerveja em lata skol...

O congestionamento infernal e saudoso na sua porta...

Os cachorros pit-bull sem focinheiras...

Queria continuar por ali...

Confessou ser igual gato...

Chorou...

Não queria mudar...

Fiquei sem palavras...

Sou igual cachorro vadio...


Adoro mudanças...

Só me basta um quarto de dormir...


Jorge Schweitzer


A Chave da Porta da Frente...

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Jamais imaginei que a Rua São Miguel abriga um asilo de velhos numa de suas curvas logo abaixo da comunidade do Casa Branca antes da próxima de onde se vislumbra a favela do Borel por inteiro antes de se chegar na Usina a caminho da sinuosa subida do Alto da Boa Vista...

Descobri num domingo de uma tarde com sol batendo mais um de seus recordes de temperatura desértica compatíveis a todos desacordos de Kyoto...

O tal asilo da Rua São Miguel é um simpática casa de muros altos aonde, por de trás, se abrigam memórias aprisionadas em recordações enrugadas e mãos murchas como sacolas plásticas furadas na base sem mais serventia...

No banco da frente de meu táxi, um senhor da minha idade...

Atrás, sua irmã e a mãe idosa e tagarela...

Apanharam meu táxi na Rua Visconde de Albuquerque...

Fui parado por um daqueles serviçais de guarita do Jardim Pernambuco...

Deduzi que o destino seria algum elegante restaurante próximo do obelisco..

Errei...

- O senhor conhece a Rua São Miguel na Tijuca?

Conheço bem....

Mas somente afirmo que 'sim'...

Viajo em lembranças enquanto dirijo....

Na realidade trabalhei no Colégio Marista São José ali próximo na Rua Conde de Bonfim onde ao lado existia a Fábrica de Cigarros Souza Cruz...

Como era um goleador competente e sortudo do time da Escola acabei sendo convocado para jogar no time do Borel num terreno - onde atualmente existe um CIEP - que se chamava 'Beira Rio' as margens do Rio Maracanã...

Carlos Alberto Pintinho e Geraldo do Flamengo também jogavam por lá enquanto baforavam antes de entrar em campo...

Aquilo era uma festa...

Devaneio que algum parente duro convidou-os para encontro social programa de índio insuportável...

Nada...

Sou despertado pela mãe de ambos que remexe a bolsa...

- Acho que perdi minhas chaves... Como vou entrar em casa?

Chegamos...

Enquanto a filha aperta a campainha do asilo da Rua São Miguel e entra com
a mãe...

O filho pede para que eu aguarde me confidenciando que ali é um asilo onde sua mãe será internada ...

- Vou retornar com o senhor... Sabe como é... A corrida será ótima... Preciso apanhar as coisas dela novamente no Leblon e voltar... A vida é assim mesmo... Ela está com muitos problemas... Alzeihmer... Aqui é o melhor prá ela... Nós a amamos muito, muito... Seriam necessários quatro enfermeiras se ela continuasse em casa... Custa caro... Se eu fizesse as malas na frente dela ia ser complicado... É rápido... A família está administrando o problema... Estamos sofrendo muito...

Salto do carro...

- Só fiquei aborrecido por vocês terem lhe tomado as chaves da porta de casa...

- Que bobagem!

- Sua mãe tem direito de conservar o sonho de algum dia retornar....

- Impossível...

- É triste saber que não temos mais uma casa para voltar...

- É fácil julgar quando se está de fora...

Pode ser...

Pode ser...
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Preferi não fazer o restante da corrida...




Jorge Schweitzer